sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

DOIS CORAÇÕES (II parte)

Desculpe?
O senhor tem dois corações.
Tenho dois corações?
Tem, tem dois corações. Um aqui e outro aqui. O médico apontou umas sombras difusas no ecran. Samuel não viu dois corações. Nem sequer um só coração. Não viu nada senão umas manchas no ecram.
Mas… mas isso não é normal, pois não?
Não, não é nada normal. De facto, não conheço registo de alguma vez ter havido alguém assim. Sou cardiologista há quarenta e três anos e nunca vi nada assim. Tem dois corações, um mais à esquerda do peito, no sítio normal e outro exactamente a meio do peito. Ambos batem, mas não ao mesmo tempo, ora um ora outro, parece que estão a tocar uma música que só eles ouvem. Nunca vi nada assim. Tenho que verificar a minha disponibilidade, mas penso que a operação se poderá realizar na próxima semana.
Operação? Que operação?
Que operação? Ora, para lhe retirar o coração excedentário, o que havia de ser?
Retirar o coração excedentário? Mas porque é que tenho que retirar o coração excedentário?
Porque o senhor não pode viver com dois corações.
Não posso? Porquê? Pois se eu vivi trinta e oito anos com dois corações e nunca me fizeram mal, porque é que agora não posso continuar a viver com os dois?
Porque… porque não. Porque é contra todas as regras de anatomia humana. As pessoas só têm no corpo aquilo que precisam e você só precisa de um coração para viver.
E o que é que vão fazer com o meu coração excedentário?
Bem, não sei. Pode doá-lo para investigação ou para transplante, se estiver saudável. Se não quiser, deitamo-lo fora.
Para o lixo? Deitam o meu coração para o lixo?
Sim, para o lixo.
Samuel saiu do consultório sentindo-se a pairar a centímetros do chão. Não conseguia focar nada à sua volta, tudo difuso, como se olhasse a realidade através de água. Acordou com a voz da secretária. São cento e vinte euros, se faz favor.
Foda-se, pensou, cento e vinte euros…
Pagou e saiu.
Já na rua a chuva tocada a vento acabou de o despertar. Voltou a gola do casaco para cima para lhe proteger o pescoço e dirigiu-se ao carro. Depois mudou de ideias e olhou em redor à procura de um bar, um café, qualquer coisa. Precisava de uma bebida.
Finalmente descobriu um bar um pouco mais à frente, lembrava-se de já lá ter ido com uns colegas. Era já noite e as luzes dos carros ficavam desfocadas com a chuvinha. Entrou no bar e sentou-se ao balcão. Pediu uma bebida forte e ficou a olhar fixamente em frente, sem ver as filas de garrafas no expositor do bar. Cento e vinte euros e vão deitar o meu coração para o lixo. Cento e vinte euros e vão deitar o meu coração para o lixo. Esta frase andava em voltas na sua cabeça, como um inútil carrossel, sempre à volta, sem chegar a nenhum sítio, a nenhuma conclusão.
Acabou por voltar para casa a pé, venho buscar o carro amanhã.
Foi directamente para a cama, apesar de ainda não serem nove horas.

2 comentários:

Calos disse...

BRUTALLLLL!!!!!!!
Tu és absolutamente única e eu tenho tanto, mas tanto orgulho em ser A TUA AMIGA e TU A MINHA!
Beijos daqui ao céu!

Feridas disse...

Calma, ainda não acabou...