segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

CÁ VAI O FINAL DO CONTO, ANTES QUE A CALOS MORRA DE CURIOSIDADE

A noite passou lenta, ora às voltas na cama a ver os minutos a passar no despertador iluminado ora com lapsos de duas ou três horas em que adormecia e perdia a noção do tempo.
Os sonhos eram povoados de corações, corações cor de rosa de Barbie, corações humanos, a escorrer sangue, ilustrações de corações nos livros de ciências, abertos ao meio, as válvulas, as artérias, iscas de coração amontoadas numa taça no talho, meio submersas em sangue escuro…
Acordou pelas oito horas. Era sábado.
Não, não posso deixar um coração perfeitamente saudável ir para o lixo. É o meu coração. Certamente haverá um destino melhor a dar a um coração do que ir para o lixo.
Saiu da cama e dirigiu-se à casa de banho. Olhou-se no espelho e viu os estragos que a noite anterior lhe tinham deixado no rosto. Aproximou a cara do espelho até o embaciar com a sua respiração. Viu os estragos que o tempo também já lhe tinha deixado no rosto. Viu as noitadas, os anos que fumou, as horas ao sol na praia, os desgostos – quais desgostos, caramba nunca tive desgostos (a imagem da Clara passou rapidamente diante dos seus olhos, deitada no chão, meio adormecida, a roupa descomposta, um seio à vista, naquela dia em que tinham feito amor no alto de uma serra, depois de uma caminhada de três horas…)
Já não vou para novo, porra.
E subitamente teve necessidade de dar algum sentido à sua vida, de fazer alguma coisa que realmente importasse, alguma coisa que desse um artigo numa revista de domingo, que lhe desse um nome numa rua, que fizesse os seus amigos recordá-lo como uma espécie de herói.
Tenho um coração para dar, isso há-de valer alguma coisa. Tanta gente a precisar de um coração… Eu sou um gajo bom, tenho bom coração, há tanta gente sem coração, tipos que batem nas mulheres, que matam os filhos aos tiros, que esfaqueiam prostitutas em becos esconsos. Eu nunca era capaz de fazer isso, dou sempre nas campanhas contra o cancro e para o Banco Alimentar, uma vez até fiz uma transferência para a Unicef…
Estava traçado o plano, o coração iria para um criminoso sem coração, que a ele lhe faria mais falta, de preferência a um daqueles que tivesse matado muita gente, numa escola americana ou aquele gajo que desatou aos tiros na Noruega. Talvez até salvasse alguém da cadeira eletrica, pois se um juiz reconhecesse que o criminoso daqui para a frente já era um homem com coração, talvez até lhe revogasse a pena capital.
Correu para o computador e passou a manhã a ler artigos sobre serial killers, o estripador de Lisboa e outros do mesmo calibre.
Perto do meio dia já sentia uma vaga náusea com a ideia de tanto sangue e vísceras espalhadas pelo chão.
Que horror, estes tipos não merecem o meu coração, ainda o estragavam.
Decidiu mudar de estratégia e procurar pessoas que estivessem doentes e precisassem de um coração para viver.
Horas mais tarde desistiu. Eram tantas, como escolher, crianças com a vida toda pela frente, mães de família, jovens confinados a uma cama, ligados a máquinas, o meu coração é só um, não consigo escolher uma destas pessoas.
Já tinha passado metade da tarde. Samuel continuava em cuecas e camisola de pijama. Não tinha comido nada em todo o dia, não tinha tomado banho, não se tinha barbeado, não tinha lavado os dentes.
Já farto de tanta investigação, cheio de frio e com o estômago a doer-lhe de fome, levantou-se do computador e foi espreitar o frigorifico. O interior do frigorifico apresentava uma aridez saariana. Amanhã tenho que ir às compras. Mas a imagem do hipermercado atulhado de compradores de domingo, transformando os corredores em pistas de carrinhos de choque, deprimiu-o ainda mais. Pelo menos a Clara evitava-me esta seca de ir às compras.
Sempre a Clara, sempre a Clara, mas será que nunca mais consigo deixar de pensar nela. Vou mas é sair e comer alguma coisa.
Barbeou-se, tomou banho e vestiu-se sem nunca deixar de pensar na Clara. Se calhar devia contar esta história do coração a alguém. Queria muito contar à Clara, mas o seu orgulho não lhe deixava chegar essa conclusão imediatamente. Se calhar devia contar isto a um amigo íntimo, a um familiar, a alguém. Passou mentalmente em revista os seus amigos dos copos, do futebol, do emprego, o seu irmão, lá longe, nos arredores do Porto, já não falo com ele há mais de dois meses, a mãe cheia de achaques e finalmente pode concluir que não tinha mais ninguém a quem contar senão à Clara. Pronto, vou ligar-lhe, pode ser que ela queira ir comer alguma coisa, digo que tenho um assunto muito delicado para lhe falar, relacionado com a minha saúde, é isso.
Ligou-lhe. A Clara tinha qualquer coisa combinada, não podia, mas foi simpática e dispôs-se a ouvir o problema pelo telefone. Samuel contou-lhe. Sentiu-se um pouco idiota, tenho um coração a mais, quero doá-lo para alguma causa nobre. O tom de voz de Clara ficou um pouco condescendente, como quem fala com uma criança que diz querer ser astronauta quando for grande.
Samuel desligou e saiu para comer.
A Clara foi mesmo querida, ouviu-me e disse que eu tinha razão, que um coração é uma coisa preciosa, que deve ter um destino importante.
E lentamente a decisão foi-se formando no seu espírito. A Clara é a única pessoa no mundo que merece o meu coração, vai cuidar bem dele, vai ficar bem entregue.
Feliz com a decisão, Samuel passou o domingo num limbo de conforto e prazer.
Na segunda feira telefonou ao médico. Deixou-se operar, mandou encastoar o coração em ouro e enviou-o à Clara como presente.
Ao abrir a caixa que foi levantar ao correio Clara empalideceu. Não é possível, não é possível que aquele louco me tenha mandado o coração. E num esgar de repulsa largou-o num caixote do lixo de jardim, verde, amarrado a um poste eléctrico.

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