quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

CONTOS, OUTRA VEZ

Pessoal, estou animadíssima com as críticas aos meus contos. Hoje o meu pai mandou-me o seu comentário ao conto da Calos, que ele também ainda não tinha lido (nem ele nem ninguém) e leu aqui. Ando cá com umas ideias... depois conto-vos.
Agora, aqui vai a primeira parte do conto do meu marido, devidamente autorizado pelo próprio.

DOIS CORAÇÕES

Sentado na sala de espera Samuel bufava…
Odiava salas de espera, odiava conversas de circunstância, odiava as televisões encostadas ao tecto, sem som para não incomodar, odiava as revistas sem capas, sempre com as palavras cruzadas já feitas, odiava o próprio conceito de esperar. A ideia que eu estou aqui enquanto tu estás a fazer qualquer outra coisa e eu não posso fazer nada enquanto tu não acabares o que estás a fazer e que me impede a mim de fazer seja o que for.
Mas o que é que eu estou aqui a fazer? Não tenho nada, estou bom, faço desporto, não fumo. Sou saudável. O que é que estou aqui a fazer?
Recordou-se da cara apalermada do técnico de saúde dentro da estúpida autocaravana da medicina no trabalho enquanto olhava para o seu electrocardiograma. Aguarde um momento que vai ser visto pelo senhor doutor. Depois a própria cara apalermada do médico a olhar para o mesmo electrocardiograma. Mas o que é que se passa? Estou bem? Tenho alguma coisa? Bem, respondeu o médico, não sei bem, parece-me que é assunto para um cardiologista, eu sou um simples médico do trabalho. Provavelmente não é nada. É melhor consultar um especialista.
E pronto. Ansiedade, regressar a casa a pensar no assunto. E se estou doente. E do coração. E se me dá alguma coisa e estou aqui sozinho. Se a Clara aqui estivesse saberia o que fazer, mas a Clara já lá não estava há mais de oito meses. Coisa chata o divórcio. Parece impossível, quase dez anos, contados os dois de namoro. Era tudo tão diferente no principio, onde é que tinha ido parar aquela intimidade, aquela certeza de que seriam um para sempre, quando é que tinham começado as discussões, aquela sensação de vazio depois de fazerem amor, quando é que tinham deixado de falar, de se ligar a meio do dia só para ouvir a voz do outro. Quando é que tinha deixado de gostar dela. Quando é que as sardas no peito dela lhe passaram a ser indiferentes e a sua gargalhada lhe deixou de soar a pássaros…
A sua linha de pensamentos foi interrompida pela voz da secretária do consultório. Sr. Samuel Ramos, pode entrar.
Cumprimentou o médico com um sussurro, enquanto se sentava à sua frente no consultório sobreaquecido, onde era difícil respirar.
Estendeu-lhe o electrocardiograma sem mais palavras.
O médico olhou-o em silêncio. Onde é que fez este exame?
Numa consulta de rotina, na medicina no trabalho.
Muito bem, vamos precisar de repetir este exame.
Mas o que é que se passa?
Ainda não sei, mas estes aparelhos que usam nas consultas de medicina no trabalho estão muitas vezes descalibrados, por isso tenho que lhe pedir que repita o exame. Mas podemos fazê-lo já e depois falamos.
Foi repetir o exame numa saleta ao lado do consultório.
Ficou estendido na maca, a olhar para o tecto, com ventosas em forma de bolinha agarradas ao seu peito. Que chato que isto deve ser para as gajas, estarem aqui de mamas ao leu com o peito cheio de sensores. Ainda bem que não sou gaja.
O exame ficou pronto. Samuel regressou à sala de espera e esperou de novo. A revista que tinha folheado à pouco estava agora nas mãos de uma mulher idosa, com uns óculos muito grossos. Ainda bem que a velha está a ler a revista, senão já sei que me estava a espetar uma seca acerca das suas doenças. Tem mesmo carinha de ter uma data de doenças que adora contar.
Foi de novo chamado ao consultório do médico e voltou a experimentar a sensação de dificuldade em respirar por causa do calor.
Sentou-se e fitou o rosto impassível do médico que observava o novo electrocardiograma.
Esperou.
Finalmente o médico levantou os olhos e tirou os óculos. Tinha uma expressão estranha.
Então, senhor doutor? Tenho alguma coisa.
Vou ter de lhe pedir que faça uma ecografia.
Uma ecografia? Não me diga que estou grávido...
Não. A ecografia não serve só para examinar grávidas. Queira despir-se da cintura para cima e deitar-se na marquesa que está atrás daquela biombo.
Mas quésta merda?, pensou Samuel, mas o gajo não me diz o que é que se passa?
Despiu-se deitou-se na marquesa. Tinha o peito salpicado de bolinhas, marcadas pelos sensores do electrocardiograma.
O médico atravessou o biombo e sentou-se atrás do ecógrafo. Ligou a maquina e sem aviso espalhou um gel gelado no peito de Samuel
Foda-se… desculpe, está frio.
O médico não respondeu. Espalhou o gel com um sensor no peito do paciente, sem tirar os olhos do ecran do aparelho.
Samuel esperou em silêncio.
Então, passa-se alguma coisa?
Silêncio.
Finalmente, passa, passa-se uma coisa muito estranha. Nunca vi nada assim.
O médico arrumou o sensor e rasgou um papelinho que a máquina expelia por uma pequena ranhura. Passou a Samuel umas folhas de papel de cozinha que rasgou de um rolo, pode limpar-se. Por fim tirou os óculos e encarou Samuel.
O silencio tornou-se espesso. Samuel ergueu-se na marquesa e apoiou o corpo no antebraço.
Então?
O senhor tem dois corações.

(continua)