quinta-feira, 31 de maio de 2012

CONTOS DE TODOS OS DIAS - MAIO


SANTA INOCÊNCIA

Era um daqueles fins de tarde que parecem não ter fim.

O grupo de amigos estava no apartamento de Portimão, todos jovens casais, na casa dos vinte anos. Estavam no tempo leve e infinito do verão.

Era um prédio de três andares, todo pertencente à mesma família. Os pais tinham o apartamento do rés-do-chão e os dois filhos os apartamentos do primeiro e do segundo andares.

O prédio não tinha elevador, mas uma escada de alto a baixo, na traseira do prédio, num patim iluminado pelo sol impiedoso do Algarve.

Cá em baixo, ao fundo da escada, a luz do sol chegada coada e o páteo era fresco e sombrio. Havia vasos com fetos enormes, quase amazónicos e o espaço reduzido parecia, ainda assim, amplo. Havia um tanque de cimento de lavar a roupa e uma mangueira enrolada no chão. Quem olhasse para cima em direcção ao telhado, sentia-se observado pelas janelas dos dois apartamentos de cima, a toda a volta da escada, vidros, cortinas voadoras e caixas de estore, empilhados até ao quadrado de céu muito azul, lá longe.

O grupo jogava ruidosamente às cartas em volta de uma mesa coberta de garrafas de cerveja vazias e cascas de camarões e de amendoins.

A menina estava sozinha. Não havia com quem brincar.

A sensação de estar sozinha num mundo povoado por joelhos de adultos à altura dos seus olhos era-lhe familiar. Ainda não tinha irmãos nem primos e os amigos dos pais ainda não tinham filhos.

Por isso tinha amigos que só ela via, dois que a acompanhavam sempre, o Chiófino e o Catarino, e outros, que inventava consoante as circunstancias lhos traziam.

Essa tarde estava particularmente aborrecida. Quando os adultos bebem cerveja e se divertem com coisas de adultos uns com os outros, as crianças passam à categoria de “puto que está sempre a chatear”. E a menina estava sempre a chatear. Vem brincar comigo, descasca-me um amendoim, quero água, quero um gelado, tenho xixi…

Os adultos mal a ouviam.

Um dos donos da casa acaba por olhar para a menina com um ar enfadado: “olha, vai lá abaixo ver se eu lá estou…”

E a menina foi.

Desceu dois andares de escadas por entre as caixas de estore e as cortinas voadoras, até chegar ao patim dos fetos amazónicos. Depois voltou a subir.

Quando chegou ao segundo andar, parou um instante para recuperar o fôlego.

Pôs-se em bicos de pés para encontrar o adulto que lhe interessava e quando o descobriu bateu-lhe no ombro três vezes, como quem bate a uma porta fechada.

- Já lá fui. Tu não estavas lá.

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