quarta-feira, 2 de maio de 2012

CONTOS DE TODOS OS DIAS - ABRIL

MAL DE AMOR
Quando me deixaste eu quis morrer.
Quis cortar os pulsos, fazer uma tragédia farfalhuda, com sangue a jorrar em esguicho e a salpicar as paredes e o teto.
Quando me deixaste o mundo acabou, as torres ruíram, as barragens rebentaram e a água inundou tudo, levando à sua frente casas, campos, cidades inteiras. Quando me deixaste quis subir aos montes e gritar ao mundo a minha imensa dor. Quis elevar-me no ar e explodir em milhões de grãos de pó.
Quando me deixaste deixou de haver luz, o sol apagou-se.
Um frio glaciar varreu a terra e gelou os vulcões e as fornalhas.
O próprio mar gelou e deixou os navios imóveis na solidão do horizonte. Tudo o que o mar continha permaneceu para sempre suspenso nos abismos.
Quando me deixaste a vida acabou na terra e em todos os restantes planetas do universo, que já não passavam de bolas estéreis em suspensão no nada.
Quando me deixaste nunca mais houve primavera nem verão. Nunca mais floriu uma árvore, nunca mais nasceu uma erva na aridez da minha vida.
Quando me deixaste os rios pararam e a água apodreceu, com peixes inchados a boiar à tona.
Quando me deixaste começaram a nascer animais defeituoso e eu própria morri de uma doença incurável
Abriram-se-me feridas na pele, cancerosas e purulentas. Os meus olhos cegaram e tornaram-se brancos como os dos peixes das cavernas. As minhas mãos encarquilharam-se como folhas de Outono e os meus pés apodreceram e caíram-me.
Quando me deixaste esqueci-me de comer e de dormir. Deixei de saber andar e falar e sorrir. E também me esqueci das pessoas e dos lugares. Passei a vaguear sozinha num mundo todo igual.
Quando me deixaste nunca mais houve futuro, nem passado, nem sequer presente. Não havia tempo, não havia espaço, só havia dor e trevas e prato e ranger de dentes. Os relógios pararam naquela hora, os pêndulos ficaram quietos, inclinados para onde lhes competia, como se a sala por inteiro se tivessem inclinado para um lado. Nas ampulhetas um único grão de areia passou a suster todos os que sobre ele se amontoavam e ficou atravessado no vidro num imenso esforço, qual Atlas com a sua montanha às costas.
Parou tudo, as pessoas nas suas vidas, os carros nas suas viagens, os pensamentos a pairar estupidamente sobre as cabeças dos seus donos. Só eu me movia impotente e cega, com um grito preso na garganta, que não saía e que ninguém ouvia.
Volta volta volta volta volta volta
… … …
Até que, por fim, alguma coisa estalou em mim.
A pouco e pouco voltou a haver luz e calor. Os rios retomaram o seu caminho e o mar revoltou-se com os assomos do vento.
As casas foram de novo erguidas como depois de uma guerra.
A chuva voltou a cair e fecundou outra vez a terra seca.
Os pássaros reaprenderam a voar e as árvores voltaram a dar frutos.
Quando despertei do torpor o mundo tinha seguido o seu percurso, ninguém tinha esperado por mim.
Tive que correr como louca para apanhar o meu lugar, para voltar a estar onde devia.
Reaprendi a falar e, uma ou outra vez, até a cantar.
A loiça voltou a ficar inteira na minha mesa e a própria mesa voltou a suportar o peso dos convivas.
Agora olho para trás e vejo que nada se alterou no decurso da história. Os natais continuaram a vir com regularidade, a cadencia das luas não se alterou, mesmo as andorinhas conseguiram orientar as agendas anuais.
Verifico que os ventos atómicos que varreram tudo não beliscaram quase nada à minha volta.
Apenas a minha pele acusa ainda umas pequenas cicatrizes muito ténues.
Mas até essas ouvi dizer que se disfarçam com cirurgia plástica.

1 comentário:

Calos disse...

Amiga...és grande!