quarta-feira, 7 de março de 2012

CONTOS DE TODOS OS DIAS - FEVEREIRO parte II

A Notária terminava a ultima escritura do dia. Hoje foram quatro, nada mau. São quase quatro horas, arrumamos tudo num instante e hoje saímos mais cedo, que amanhã é véspera de natal.
O Emigrante passou todo o dia em ânsias. Tanta gente para rever, tantos primos para visitar, quinze dias não são nada e a sua cabeça estava noutro sítio, logo à noite, logo à noite é que lhe vou dar a prenda.
Tinham sido quatro meses de poupança extra, contar os tostões, renunciar à cerveja no bar ao final do dia, renunciar ao cinema de vez em quando, renunciar, renunciar. Valia a pena, os olhos dela vão brilhar como estrelas. Era este o pensamento há quatro meses, desde que tinha tido a ideia. E se eu lhe oferecesse uma viagem aqui a França? E num segundo conseguiu ver-se a si e a ela a passear em Paris, a ver as luzes de Monmartre à noite, a provar um croissant quentinho de manhã. Quem sabe levar a Menina à Eurodisney… Desde esse instante que não consegui pensar noutra coisa, vai ser a sua prenda de Natal, hei-de conseguir juntar o dinheiro, nem que deixe de comer, na Primavera ela e a Menina vêm cá ver-me.
Passou-se o Natal, passou-se o ano novo.
Nos primeiros dias de Janeiro o trabalho no cartório é sempre curto. Parece que toda a gente correu a fazer tudo no mês de Dezembro, com medo que o mundo acabasse e ficassem coisas por fazer e depois todos repousam, na fartura do trabalho feito e das consoadas bem comidas e bem bebidas.
Mas nessa sexta feira, a primeira do ano, parecia que estava a cair o Carmo e a trindade, bolas e eu com tanta vontade de ir para casa que está um frio dos diabos e só me apetece hibernar em frente à lareira, pensava a notária. Mas ainda faltavam rever duas ou três coisas marcadas para a próxima semana. E ainda por cima estou a sentir-me adoentada, só arrepios e pontadas no corpo… que se lixe, venho cá amanhã. Agora vou para casa, tomo qualquer coisa e enfio-me na cama.
Em casa do Emigrante, gastavam-se os últimos cartuxos das férias…
Já uma ou outra lágrima furtiva assomava aos olhos da Mulher do Emigrante. Já a mãe e as tias lhe enchiam as malas com chouriços e bacalhaus bem acondicionados, que lá em França não apanhas disto, não… Já só mais amanhã e domingo de madrugada lá parte outra vez, que segunda feira já pega ao trabalho.
Apenas a esperança da chegada da Primavera iluminava os olhos do Emigrante, em Abril vais-me lá ver. Vou-te mostrar a torre Eiffel e, se calhar, até podemos levar a Menina à Eurodisney, a ver o rato Mickey. Gostavas, minha pimpolha, de ir ver o rato Mickey? E também os olhos da Menina brilhavam, enquanto dobrava o riso.
E, de súbito, uma pedra caiu no lago de tranquilidade: olha, olha… a autorização que me passaste para eu sair do país com a Menina não está bem… o nome dela ficou mal escrito… E agora? E se não ma deixam levar?... E se não posso entrar no avião para te ir ver? Diz que no aeroporto são muito rigorosos com estas coisas, olha a minha prima, que não levava a autorização bem passada na viagem de finalistas e não a deixaram ir…
Parecia que o mundo ia acabar. Ai, que eu bem sabia que isto era bom demais para ser verdade, não querem lá ver, a portuguesinha ia a Paris… Ai tanto dinheiro gasto na passagem e agora não vamos…
Calma, mulher, dizia o Emigrante, alguma coisa se há-de resolver, ainda só vou no domingo, amanhã ainda é sábado, alguma coisa se há-de resolver.
E vai de ligar a amigos e vizinhos, se alguém sabia como resolver o problema da autorização mal passada, vai de procurar na internet se algum cartório estaria aberto ao sábado… nada. O Emigrante começa a desmoralizar, então neste país, quem é que trabalha ao sábado nesses serviços…
Calma mulher, talvez eu te possa mandar outra autorização feita lá, no consulado.
No sábado de manhã, a notária levantou-se contrariada, saindo a custo do calor da cama. Ainda me apetece menos do que ontem… Mas vá, lá terá de ser, mais vale ir lá já do que deixar para logo, que ainda me custa mais. E agasalhada até ao nariz para combater a gripe mal curada, lá se dirigiu ao Cartório.
A secretária estava atulhada de papeis. Quem é que se entende no meio de tanto papel!...
Vá, o melhor é despachar isto de vez, para não atrasar o almoço. E as horas seguintes são passadas em profunda concentração. Tanta, que a pilha de papeis e livros acaba por empurrar para o chão o vaso com uma planta que recebera no Natal.
Vá lá, ao menos não se partiu…
Liga o aspirador e começa a recolher a terra espalhada pelo chão. No momento em que desliga o aspirador ouve o telefone a tocar. Olha, se calhar já me estão a chamar para o almoço. Está?
A respiração do outro lado da linha é acelerada. É do cartório?
Sim. Quem fala?
Olha, estou a ligar por causa de um engano…
De um engano? Que engano? Nós estamos encerrados.
Pois, compreendo. Mas eu vou viajar amanhã e deixei uma autorização para a minha mulher poder ir ver-me com a nossa filha e a autorização tem um erro.
Um erro? Mas o erro foi nosso?
Não, não. Mas eu preciso mesmo de emendar isto…
Então o que precisa é de um reconhecimento de assinatura?
Sim… eu estou mesmo desesperado…
Olhe, apanhou-me por mero acaso. E também ouvi o telefone por acaso, que tinha o aspirador ligado. Pode vir eu faço-lhe o reconhecimento.
Coincidência pode ser só outro nome para a Mão de Deus…

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