terça-feira, 3 de abril de 2012

CONTOS DE TODOS OS DIAS - MARÇO

A CARTA
Teria, de certo, mais de oitenta anos.
Era a imagem do ribatejano, parecia saído de uma aguarela de Roque Gameiro. Calça subida na cintura e curta na canela, por cima da bota de lavrador, camisa branca sem colarinho e colete, chapéu preto de aba direita, à sevilhana e samarra no inverno.
As pernas já há muito o haviam traído, pelo que avançava a custo, arrimado a duas bengalas. Cabelo curto, patilhas compridas, quase a encontrarem-se no queixo, cara redonda.
Tinha modos cerimoniosos, dizia “sempre a agradecer” e “um seu criado”.
Cresceu na lezíria, mal foi à escola.
Sabia de alfaias e sementeiras, sabia de luas e de arremedas. Os ciclos das estações estavam-lhe escritos na palma da mão, em sulcos fundos, sombreados a preto, de quem trabalhou a terra toda a vida.
Era um homem de outros tempos, dos tempos em se dormia no palheiro, juntamente com a burra, se dividia uma sardinha por três e se comia galinha uma vez por ano, pela Páscoa da Ressurreição.
Era também do tempo do respeito, de baixar os olhos para o chão e de tirar o chapéu da cabeça. Do tempo da honra, dos princípios, de cumprir as obrigações.
Agora estava velho. Não compreendia estes tempos. A algazarra dos netos, de olhos colados à televisão e a umas televisões pequeninas que traziam sempre na mão. Diz que é para jogarem. Mas como é que cachopos daquele tamanho jogam sem uma bola, sem um pião, sem um berlinde? Como é que jogam, ao menos, sem estarem uns com os outros, na rua, a subir aos muros, a romper os joelhos?...
As pessoas a andarem muito depressa, a passarem sem dizer bom dia, onde é que já se viu, cachopos novos, que passam por um velho sem cumprimentar.
O dinheiro… tanto dinheiro!
Dantes não havia dinheiro. Podia-se passar um ano inteiro e viver bem sem uma única moeda. O moleiro passava, levava o milho, trazia farinha. O tosquiador passava, tosquiava as ovelhas, levava lã. Matava-se o porco, comia-se todo, menos o lombo que se levava ao senhor prior. Vindimava-se, levava-se ao lagar, trazia-se vinho, deixava-se algum.
Hoje levo o meu boi a fazer junta com o teu. Amanhã trazes tu cá o teu.
Agora não fazem nada sem dinheiro.
O mundo passava-lhe à frente, muito depressa, e as pernas já não o acompanhavam, arrimado às duas bengalas.
Um dia chegou uma carta. O homem já não conseguia ler. Nunca lera muito bem, teve pouco tempo de escola. A falta de treino e os olhos a encolherem… Já não eram para leituras. E agora a carta. Toda a carta merece resposta. Passaram dois dias e nenhum neto vinha que lhe pudesse ler a carta. O homem vivia em cuidados. Quem me lerá a carta? Quem me escreverá a resposta?Ao terceiro dia o homem não aguentava mais a ansiedade. Arrimou-se às suas duas bengalas, guardou a carta no bolso da samarra e meteu-se a caminho. Ia a casa do professor, que não era muito longe.
Senhor professor, Deus o guarde. Fazia-me a fineza de me ler esta carta? Os meus olhos já não são o que eram… E estará o remetente à espera da resposta, já há três dias, pois foi há quanto ela me chegou. Preciso de lhe dar a resposta.
O professor tomou a carta das mãos do homem. Olhou-a, olhou o homem e esboçou um sorriso. Deixe lá, ti Abegão, esta carta não precisa de resposta.
Omessa, senhor professor. Pois eu hei-de deixar a carta sem resposta? Estará o remetente à espera…
Deixe lá, deixe lá.
Pronto, se o senhor professor diz… Sempre a agradecer, sempre a agradecer… cá me vou.
O professor ficou a rir-se sozinho. Era uma carta das selecções do Readers Digest, a vender enciclopédias.

1 comentário:

Calos disse...

Amiga: és grande!