AS GALINHAS NÃO NADAM
Não foi um funeral igual aos outros, pelo menos não como estamos habituados por cá. Falou-se muito dela, muitas pessoas vieram testemunhar. Conheciam-na de pequenina, da aldeia, outras de toda a vida, que foi longa e cheia de acontecimentos.
Quatro filhos, quatro netos, trabalho no campo e na cidade, animais, galinhas, porcos, coelhos.
Sair de casa de madrugada atrás do pai, com um motor de rega à cabeça e fazer vários Kilometros antes de chegar a uma leira distante. Chegar, ver o pai a montar o motor no poço, trabalhar todo o dia na leira distante e voltar para casa ao sol poente, outra vez com o motor à cabeça. Fazer outros tantos Kilometros a pé até um apeadeiro para ir buscar a roupa suja que lhe enviava o irmão do seminário e regressar passados dois dias ao mesmo comboio para devolver a roupa, lavada e passada a ferro.
Muita gente no funeral, familiares e vizinhos de cá, amigos de lá, das obras da igreja, antigos patrões, vizinhos de outras terras.
Não houve gritaria nem carpideiras, só lágrimas furtivas de quantos gostavam dela, por entre sorrisos de recordar como foi boa, como era uma imagem de mãe, pequena, arredondada, sempre sorridente. Com aquele jeito de dizer Oh cachopa…
No fim do funeral os familiares reuniram-se em casa da irmã mais nova. Todos os filhos e os netos, muitos sobrinhos, irmãos já só três, dos nove que foram. Uma mesa grande, não parecia um enterro, parecia um casamento.
Já ninguém chorou. Apenas se recordavam as coisas longínquas, da infância, da aldeia, dos que já partiram.
A filha mais nova (já tem trinta e sete anos…) recorda a melhor história de todas.
Quando penso na mãe é sempre esta história que recordo: chovia torrencialmente e começámos a ver a água a entrar no rés do chão da casa. A mãe lá nos disse, vão à loja (ao rés do chão, na aldeia chamava-se loja) buscar uma ninhada de pintos que lá tenho. A galinha deixem-na lá, que as galinhas sabem nadar. Nós, os filhos, entreolhamo-nos, mas cumprimos.
Na loja, a água já dava pelos calcanhares, mas não havia nada que se estragasse. Os pintos, coitados, já estavam bastante molhados, com o seu ar desconsolado e imbecil, de quem não pode aspirar a nada na vida senão vir a ser uma galinha. Trouxemos os pintos para cima, da galinha nem sinal.
Bem, se a mão disse que a galinha sabia nadar…
Os pintos pusemo-los em frente ao lume, a ver se arrebitavam, mas um breve momento de distracção foi o suficiente, quando demos por ela, já um pinto estava em chamas. Parecia uma profecia bíblica do apocalipse: se não morreste pela água morrerás pelo fogo.
Se uma galinha é uma animal estúpido, o que não será um pinto, que ainda nem galinha é!
Da galinha nunca mais houve novas.
O pai nunca mais deixou de espicaçar a mãe, cada vez que ela dizia ou fazia alguma coisa estranha, logo ele lhe atirava: pois, isso deve ser como a da galinha que nadava…
A mãe suportou aquilo muito tempo, com o seu ar seráfico, mas cada vez a arder mais por dentro.
E um dia, em que de novo levou a com a história da galinha nadadora, a mãe explodiu: agora é que vais ver se as galinhas nadam ou não nadam.
Disparou como um tiro direito ao galinheiro onde entrou qual furacão, provocando um reboliço de galinhas em pânico. Agarrou a primeira desgraçada que se lhe atravessou à frente e espetou com ela num tanque cheio de água.
A pobre galinha debateu-se como pode, num espavento de água e cacarejos e nós, após um primeiro momento de estupefacção, lá a fomos salvar.
Não foi fácil, a galinha estava desvairada.
Apanhou o susto da sua vida. Salvou-se, mas nunca mais foi a mesma. Acabámos por ter de a matar, porque ficou meio demente. A mãe teve de se conformar, as galinhas não nadam.
1 comentário:
Gosto muito, como de todos aliás!
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