SANTA
INOCÊNCIA
Era
um daqueles fins de tarde que parecem não ter fim.
O
grupo de amigos estava no apartamento de Portimão, todos jovens casais, na casa
dos vinte anos. Estavam no tempo leve e infinito do verão.
Era
um prédio de três andares, todo pertencente à mesma família. Os pais tinham o
apartamento do rés-do-chão e os dois filhos os apartamentos do primeiro e do
segundo andares.
O
prédio não tinha elevador, mas uma escada de alto a baixo, na traseira do
prédio, num patim iluminado pelo sol impiedoso do Algarve.
Cá
em baixo, ao fundo da escada, a luz do sol chegada coada e o páteo era fresco e
sombrio. Havia vasos com fetos enormes, quase amazónicos e o espaço reduzido
parecia, ainda assim, amplo. Havia um tanque de cimento de lavar a roupa e uma
mangueira enrolada no chão. Quem olhasse para cima em direcção ao telhado,
sentia-se observado pelas janelas dos dois apartamentos de cima, a toda a volta
da escada, vidros, cortinas voadoras e caixas de estore, empilhados até ao
quadrado de céu muito azul, lá longe.
O
grupo jogava ruidosamente às cartas em volta de uma mesa coberta de garrafas de
cerveja vazias e cascas de camarões e de amendoins.
A
menina estava sozinha. Não havia com quem brincar.
A
sensação de estar sozinha num mundo povoado por joelhos de adultos à altura dos
seus olhos era-lhe familiar. Ainda não tinha irmãos nem primos e os amigos dos
pais ainda não tinham filhos.
Por
isso tinha amigos que só ela via, dois que a acompanhavam sempre, o Chiófino e
o Catarino, e outros, que inventava consoante as circunstancias lhos traziam.
Essa
tarde estava particularmente aborrecida. Quando os adultos bebem cerveja e se divertem
com coisas de adultos uns com os outros, as crianças passam à categoria de “puto
que está sempre a chatear”. E a menina estava sempre a chatear. Vem brincar
comigo, descasca-me um amendoim, quero água, quero um gelado, tenho xixi…
Os adultos mal a ouviam.
Um
dos donos da casa acaba por olhar para a menina com um ar enfadado: “olha, vai
lá abaixo ver se eu lá estou…”
E
a menina foi.
Desceu
dois andares de escadas por entre as caixas de estore e as cortinas voadoras,
até chegar ao patim dos fetos amazónicos. Depois voltou a subir.
Quando
chegou ao segundo andar, parou um instante para recuperar o fôlego.
Pôs-se
em bicos de pés para encontrar o adulto que lhe interessava e quando o
descobriu bateu-lhe no ombro três vezes, como quem bate a uma porta fechada.
-
Já lá fui. Tu não estavas lá.
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