terça-feira, 6 de março de 2012

CONTOS DE TODOS OS DIAS - FEVEREIRO I parte

COINCIDENCIAS
O solavanco do comboio a parar na estação fez o Emigrante bater com a cabeça no vidro e acordar estremunhado. Olhou para fora, por entre o vidro embaciado. Estava a chover e o dia nascia a muito custo. Mal se via o céu azul escuro para lá das luzes amarelas da estação. Uma voz roufenha, antecedida de um sonoro tim nim nim, anunciou que acabava de der entrada na linha número dois o comboio expresso proveniente de Paris, com destino a Lisboa Santa Apolónia, efectua paragens… O Emigrante sobressaltou-se compreendendo, finalmente, que a voz falava em português. Tinha chegado a Vilar Formoso, estava em Portugal.
O comboio acabou de se imobilizar e um ar frio invadiu a carruagem quando os passageiros começaram a sair. Ainda faltam cinco horas, posso dormir mais um bocado, pensou o Emigrante. Fechou os olhos e ajeitou o casaco que, enrolado, lhe servia de cabeceira.
Mas o sono já não voltou. A pouco e pouco a excitação da chegada começou a subir por ele e, sem abrir os olhos, deixou-se inundar pela alegria de voltar a casa. Deixou que as imagens lhe passassem à frente e acarinhou cada uma delas como se lhe fizesse festas. A Mulher do Emigrante, gorducha depois de ter a Menina, a barriguinha proeminente, as ancas redondas, as faces coradas e o espaço entre os dentes da frente que lhe dava um ar de gaiato sempre a rir. A Menina, que em Agosto já andava e se lhe agarrava às pernas como quem abraça o tronco de uma árvore. A casa com o lume aceso, os amigos no café, a comida da mãe. Faltam só cinco horas…
O Emigrante estava em França há ano e meio. Foi a crise que o empurrou para fora depois de fechada a fábrica onde trabalhava desde que deixara a escola, a meio do nono ano.
A Mulher do Emigrante a trabalhar por turnos num hipermercado, a Menina quase a nascer e ele sem trabalho. Não era homem para se deixar ficar a receber o subsídio de desemprego, foi.
Já lá estava um irmão que facilitou as coisas e afinal não era tão mau como esperava. O dinheiro era certinho, conseguia fazer um pé de meia e não pensava em tirar a família de Portugal. Quando as coisas melhorassem voltava e já haveria de ter juntado para pagar quase todo o crédito da casa. A crise não havia de durar para sempre.
E agora só havia coisas boas à sua espera, o Natal o Ano Novo, com baile na aldeia, as ancas redondas da Mulher do Emigrante a Menina, que devia já ter crescido bastante. Quinze dias, quinze dias era uma eternidade para quem já não sentia o calor de casa desde Agosto.
À mesma hora, a Notária voltou-se na cama e abriu um olho para os números vermelhos do relógio despertador. Cinco e meia, boa, ainda tenho mais duas horas para dormir.
Duas horas depois o despertador tocou uns sons roufenhos e a Notária encarou o tecto do quarto. Está tanto frio, não quero ir trabalhar. Subitamente lembrou-se que as crianças estavam de férias e podia dormir mais um bocadinho. Mas a casa já se agitava, não voltou a fechar os olhos.
Ficou a fitar o tecto do quarto e a pensar na vida. Felizmente no mês de Dezembro as coisas animavam um pouco com as aflições do fim do ano, a perspectiva dos impostos a aumentar no inicio de Janeiro, os actos das empresas a celebrar antes do fim do ano. Maldita crise! Estou no fim da cadeia alimentar, pensou a Notária, os bancos não emprestam, os construtores não vendem, não há escrituras, não há negócios, não há empresas a nascer… Enfim, pode ser que o próximo ano não seja tão mau como os comentadores anunciam. Vamos lá trabalhar.
Com mais um solavanco o comboio imobilizou-se na estação do Entroncamento. O Emigrante esperava atrás da porta, já tinha visto a Mulher e a Menina, estavam à sua espera na plataforma. O coração saltava-lhe no peito e parecia que lhe entupia a garganta. O frio da rua bateu-lhe na cara como uma bofetada e ele desceu os degraus da carruagem e pousou a mala no chão. Abriu os braços e recebeu a Mulher e o mundo suspendeu-se à sua volta por um instante. Quinze dias. Quinze dias como um parêntesis na vida de todos os dias, um foguete de luzes a estourar e a iluminar o céu. E amanhã é véspera de Natal.

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